terça-feira, 15 de julho de 2014

Zeh Gustavo



A Copa espoliada


"Copa do Mundo não se faz com hospitais".
                                     Ronaldo Mafiômeno

I

Certo está o megalômano burguês-jogador, empresarião,
pseudo-herói de gana balofa, grana incontável no bolso-banco.
Danem-se o reclamante o vândalo a estudantada o manifestador
– que lhes baixem o sarrafo! E deem também no trabalhador!
Que virem só carniças, brada o bufão.

Copa do Mundo se faz com Fifa, sem culpa,
país à rifa, povo na curra ou na cova
(aí depende do estrato social!).

Copa do Mundo se faz com upepê a prensar com os andrajos,
upa, neguinho! na malandragem, inferno aos enfermos e,
se necessário, porrada em quem educa, para que aprendam.

Ao museu com a ginga, a gira, a gíria, o xingo, o chute.
Copa do Mundo não é pra viração, é rolo sério!
Não mais Preguinhos, Garrinchas, Didis, Barbosas, derrotas.
Jamais Romários e suas romarias críticas
por outros torneios.

Qualquer multa é a alma que paga.

II

Um sigladeio sem fim toma conta das cidades-sede.
O asfalto cede a uma trama de bê-erres, trans, vê-eles,
um canteiro de obras, túneis, oba-obas, tanques.
Pedestres não são bem-vindos. Nem pobres.
Que passeiem para lá!

A zanga, entretanto, chega às ruas principais.
Pedras, sprays, fumaça, bombas, greves mancham a bela paisagem
ofertada pela regra-venda que serve de tapa-olhos
mas não tampa o tanto de buracos que se podem cravar
num peito desamarrado.

Pernas que ainda driblam precisam ser urgentemente
ceifadas e os braços que carreguem bebês e foices, podados.
Tem que botar ordem nesta casa!

Policiais desenvolvem uma tática apimentada,
organizam-se como uma boa zaga.
No treinamento avisaram: sem covardia!
Partam pra cima dos terroristas!
Pau nessa putada!

III

Somos neoíndios assaltados, removidos, descartáveis
em nossa aldeia periférica. Nossa várzea tornou-se
grama sintética. Nossos desejos foram pilhados.
Ora moramos em um território vago, que ocupamos.
Somos a bola fora da cena, anfitriões nômades do
próprio espetáculo, espelhácido de nós mesmos.

Nossa vuvuzela não passa de uma corneta.
A festa foi implantada, transe induzido por mutretralhas
contrabandeadas, num trânsito feroz de muambas e tretas.

IV

Por ofício do processo civilizatório, convém eliminar
o perfume velho, o ranço do tempo, os templos de saudade oca,
as identidadezinhas desse pessoal sem vínculo com o
progresso que vem com suas vidraças reluzentes,
sua ilha de calor que afaga, seu fogo para o consumo
que nos impulsiona.

Vai abaixo, Maraca! Desencarna. Descansa.
Em seu lugar reinará um arenão fake,
clone coxinha, padrão cópia.
Meninos antigos, barba grisalhada em sonhos
úmidos de lembranças inúteis, aproveitem
e se retirem também. O ingresso aqui vai ser caro.
Seu troco não dá nem pro lanche!

Os fantasmas que caminhem por seus corredores,
seus arredores. Memória, ao contrário da Naique,
não dá camisa a ninguém.

V

Gostamos de futebol. O futebol é que não gosta mais de nós.
Vivemos um Maracanazo particular, só nosso.
Este Maracanazo se iniciou com o fechamento da geral,
passou por reformas que diminuíram as arquibancadas
e culminou com a derrubada de tudo.
O elefantão é de elite, não de elos.
Ele exclui, não junta.

Restamos, mudos. Depois mudados, também.
A poeira que subiu, depois desceu,
agora grita, se agita, se espalha, age, briga.
Nosso berrante farfalha o eco
do que fomos e precisamos voltar a ser.
Ou do que sequer tivemos a chance de nos tornar.
Oprimiram, bateram, suprimiram.

Temos – ou somos – as cartas.
Se no baralho mandam de cima, nos sobra o fazer barulho.
Passou da hora de cortar o monte,
pegar o morto e mostrar quem dispõe de melhor mão.

Pôr a mesa ao alto, por debaixo!

VI

Anônima a gente passa.
O show continua sendo transmitido pela televisão.
O jogo não é jogado, o jugo é imposto,
pisa e massacra de modo silente cada rosto.

É gol! Vamos comemorar, com a pulga atrás
das orelhas. A malta, encolhida, pula no vazio.
só carcaça.

Com raça, o escrete luta, vibra. Quer a taça
da Copa espoliada pela banca rota, troféu de sabor perdido
por conta do tino-monstro do tamanho do negócio. 

Tímido, o povo não se arreganha. Fresteja,
num saber peculiar, até o que dá por desacontecido,
essa tal de Copa que não teve. Seria pedir muito que calassem
os sorrisos possíveis!

Perto deles, quase invisível, um grupo se prepara para outra peleja.
Máscaras em prontidão, tecem na base do assim-seja
o trajeto da próxima contenda.

Qual cabeças num circo trágico e íntimo,
a bola vai rolar pelos campos, em estádios amarelados.
Que se estendam os tapetes molhados
de suor, enfeitados de confete, sujos de sangue.
Voa, canarinho, voa!


Zeh Gustavo é músico e escritor. Sambista, compõe e canta com o grupo Terreiro de Breque, do qual é fundador. É intérprete do Cordão do Prata Preta e da Banda da Conceição, blocos de carnaval do Rio. Na literatura, publicou, entre outros títulos, “Pedagogia do Suprimido” (poesia, Verve, 2013), “A Perspectiva do Quase” (poesia, Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (poesia, Escrituras, 2005). Em 2012 e 2014 foi um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto). Integrou a coletânea de contos “Porto do Rio do Início ao Fim” (Rovelle, 2012), com o texto “Comuna da Harmonia”.




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