domingo, 30 de novembro de 2014

A face perdida - Cassiano Ricardo

Testamento


Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder se lanterna
numa noite sem chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando...
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.


(do livro “Antologia poética Cassiano Ricardo”, seleção: Rubem Braga, Editora do Autor)



sábado, 29 de novembro de 2014

Desnamorados - Yassu Noguchi



o amor é uma droga


só uma boa-nova vale por um prozac
só a boa música vale por um valium

só teu boa-noite vale por um rivotril


(do livro “desnamorados: um livro colaborativo sobre o amor”, Editora Empíreo)



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Tudo o que sei sobre o que não sei - Claufe Rodrigues



Pedido de Natal


Nesse Natal
eu não quero patente de general
conta corrente de magnata
poder de presidente.
O que eu mais quero, Papai Noel
é essa mulher de presente.

Quero contemplá-la
conhecê-la
apaziguá-la
aguá-la de nuvens.

Quero entender essa mulher, Papai Noel
mas não muito.
Pois qual o prazer de esgotar na fonte
o mudo veludo dos lábios
os dentes risonhos que em meus sonhos despertam outros sonhos
a mata virgem do olhar?

Também quero, Papai Noel
explorar o corpo dessa mulher
meu novo brinquedo
passeá-la da nuca ao tornozelo
do umbigo às escápulas
ali mesmo onde ela esconde
a pelo
seu mais íntimo segredo.
Absorvê-la pelos poros
aos poucos
em beijos loucos
sem regra e sem régua
até o fundo.
Pois quem não precisa de trégua, Papai Noel
nesta vida tão normal
neste mundo tão cruel?

Por isso vou deixar meu pedido de Natal
ao pé desta janela muda
quem sabe o vento me ajuda
e ela acerta
o caminho aqui de casa.


(do livro “O pó das paredes”, Ponteio)  



quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O verso pelo avesso - David Cohen



Um poema


Nas esquinas da cidade morta
Ainda se faz poema...
O nada é pequeno, o silêncio é calado
E os olhos mulatos
Não me olham no rosto.
Nas esquinas da cidade morta
Ainda se faz poema...
Sonetos frequentam bares
Lembranças mantêm-se virgens
Pareço ouvir um samba
Que se desfaz junto com a lua
Na manhã do dia que não nasce.
Nas esquinas da cidade
A poesia é morta...
Um velho poeta lembra
Que os versos não envelhecem
E não padecem de reumatismos
Como os poetas velhos.
Nas esquinas da cidade torta
Ainda se sente pena...
Eu vejo uma cova aberta
E me pergunto se ainda há poesia
E se a saída não me sufoca
Pego numa caneta,
Desminto as minhas verdades
Falo de uma estrela que nunca vi
E das ondas que não mais verei
Cito uma procissão de poetas
Que numa romaria estrófica
Vão velar a palavra viva.
Nas esquinas da cidade morta
Ainda se faz poema...
E consumido pelo tédio
Este já está pronto
E jaz aqui.


(do livro “Olho nu”, Editora Verve)